Chamaram-lhe pintor cerebral e apelidaram o seu
estilo de "visual thinking". A pintura surrealista de René Magritte
tornou-se um marco do século XX, mas foi quase no final da sua vida que começou
a ser apreciada pelo grande público. Hoje, pinturas como "Golconde",
"A traição das imagens" ou "Filho do Homem" fazem parte da
cultura popular e ajudaram a mudar a percepção da arte surrealista.
René Magritte
(1898-1967) tinha apenas 13 anos quando a sua mãe cometeu um acto terrível.
Depois de várias tentativas de suicídio, ela atirou-se de uma ponte,
afogando-se no Rio Sambre. Diz-se que este acontecimento viria a marcar para o
resto da vida o pintor belga, levando-o a pintar quadros como Les
Amants (1928), em que dois namorados se beijam encapuçados - da mesma
forma que a sua mãe tinha sido encontrada, com o vestido cobrindo-lhe a cabeça.
Apesar da tragédia, a verdade é que Magritte se tornou um dos pintores mais
famosos do século XX e um marco incontornável da arte surrealista.
Os primeiros quadros de Magritte datam de 1915 e eram impressionistas.
No entanto, de 1916 a 1918 o belga decidiu frequentar a Academia Real de Artes
em Bruxelas de forma a aperfeiçoar a sua técnica, acabando por se aborrecer com
o conservadorismo da escola e por abandoná-la. Tornou-se então um desenhador de
papel de parede e artista comercial em Bruxelas, cidade onde passou a viver e
se casou com Georgette Berger. Os seus primeiros trabalhos, depois de sair da Academia, foram
influenciados pelo Cubismo e Futurismo. Foi, contudo, quando se aproximou de
Giorgio de Chirico e da sua pintura metafísica que Magritte mergulhou no
surrealismo que viria a marcar toda a sua obra. Em 1926, deixou o emprego para
se dedicar inteiramente à arte, sob o mecenato da Galerie le Centaure, que lhe
permitiu pintar a tempo inteiro. Le Jockey Perdu, tela terminada no
mesmo ano, foi a sua primeira obra surrealista. No entanto, a má recepção da
crítica fez com que Magritte se refugiasse em Paris e aí vivesse durante três
anos, estabelecendo contactos com Max Ernst, Dali, André Breton e Paul Éluard.
Voltando para Bruxelas, viu-se obrigado a criar uma agência de
publicidade com o irmão, de forma a ganhar dinheiro para sustentar o seu estilo
de vida. Viria mais tarde a confessar o desprezo que tinha por este tipo de
trabalho: "Detesto o meu passado e o de todos. Detesto a resignação, a
paciência, o heroismo profissional e os sentimentos bonitos obrigatórios.
Também detesto as artes decorativas, o folclore, a publicidade, as vozes dos
anúncios, o aerodinamismo, os escuteiros, o cheiros das bolas de naftalina,
acontecimentos do momento e pessoas embriagadas". Durante os anos 30
aprofundou a sua técnica, pintando imagens perturbantes e desconstruídas que
logram desafiar as percepções do público. Em 1928, Magritte já nos tinha
deixado uma pista para a leitura da sua obra com "A traição das
imagens", pintado em Cadaqués (Catalunha) na companhia de Dali. Por baixo
do cachimbo, podemos ler as palavras "Ceci n'est pas une pipe", uma
aparente contradição. Contudo, se reflectirmos acerca do assunto, trata-se da
imagem de um cachimbo que não satisfaz a necessidade do objecto real. O mote
estava lançado: não importa o quão fiel possamos representar uma imagem, é
sempre impossível capturar a sua essência.
A pintura de Magritte dá novos
significados aos objectos comuns, mas de uma forma diferente. Ao contrário do
automatismo surreal até então praticado, o seu trabalho surge da justaposição
pensada, criando uma imagética poética e exortando à hipersensibilidade do
público. O resultado são objectos híbridos, como em O Retrato (1935)
ou La Durée poignardée (1938). Os motivos eram muitas vezes
quotidianos: árvores, janelas, portas, cadeiras, pessoas, paisagens. Magritte
não procurava o obscuro e recusava o significado dos sonhos e da psicanálise.
Pelo contrário, ele procurava, através da terapia de choque e da surpresa,
libertar da sua obscuridade as visões convencionais da realidade. A
simplicidade enganadora das suas telas tem um conteúdo filosófico e poético,
satirizando o mundo instável e perturbado do século XX. Um mundo feroz (e
veloz) no qual a razão se torna indispensável para dar sentido à vida. Mas
Magritte expurga essa razão através de técnicas surrealistas, jogando com a
lógica do espectador: há nos seus quadros uma necessidade de reagir ao fenómeno
da vida quotidiana, criando algo inesperado. Um quadro de Magritte não é para
ser admirado. É para ser objecto de reflexão e ponderado - o sentido está muitas
vezes escondido e é alvo de segundas, terceiras e quartas interpretações. E as
questões acerca das suas criações ainda pairam no ar, já que Magritte nunca deu
respostas claras acerca do seu significado. La reproduction interdite ou Golconde são
alguns dos exemplos desta aura de mistério.
Durante os
tempestivos anos 40, o pintor belga passou ainda por dois períodos - os únicos
da sua vida - em que se afastou do surrealismo. Em 1943-44, influenciado por
Renoir, adoptou um estilo colorido que deixou pouco depois, dado o desinteresse
da crítica. Em 1947-48, na época "vache", foi influenciado pelos
fauvistas, pintando imagens provocatórias e rudes. Desencorajado mais uma vez
pelas críticas ao seu trabalho, acabou também por voltar ao seu "visual
thinking" ou "pintura cerebral", termos rotulados pela crítica. Apesar dos cerca de
mil trabalhos que criou até à sua morte em Agosto de 1967, René Magritte
começou apenas a ser verdadeiramente apreciado nos anos 60. O interesse
generalizado fez com que muitas das suas telas se tornassem parte da cultura popular
durante as décadas seguintes. Ainda hoje o seu trabalho é re-interpretado por
artistas modernos. O músico Rufus Wainwright é um deles e no seu vídeo Across
The Universe (2002) mostra Dakota Fanning rodeada de homens de chapéu
de coco e gabardine estáticos no ar, numa semelhança inegável com
"Golconde".
"A arte evoca o
mistério sem o qual o mundo não existiria", René Magritte.
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